
A Inteligência Artificial nas Licitações Públicas: Desafios Jurídicos e Perspectivas de Implementação.
O presente artigo analisa o uso inadequado de software automatizado (robôs) em pregões eletrônicos e seus impactos nos princípios fundamentais das licitações públicas. A análise demonstra como esses o uso desses dispositivos de forma irregular compromete a isonomia entre licitantes e frustra a livre concorrência, criando vantagens competitivas desleais que violam preceitos constitucionais. O artigo baseia-se na jurisprudência do Tribunal de Contas da União – TCU e evidencia a necessidade urgente de regulamentação específica.
O pregão eletrônico revolucionou as contratações públicas brasileiras, promovendo celeridade, transparência e economicidade. Contudo, o ambiente digital criou oportunidades para práticas que comprometem os objetivos originais da modalidade: o uso inadequado de software automatizado para efetuar lances em milésimos de segundo, os chamados “robôs”.Esses “robôs” se usado, inadequadamente, conferem vantagens competitivas desproporcionais aos seus usuários, alterando fundamentalmente a dinâmica dos certames e violando princípios constitucionais basilares. A ausência de regulamentação específica tem gerado interpretações jurisprudenciais divergentes, evidenciando a urgência de análise aprofundada sobre a matéria.
2.1 A Dualidade da Inovação Tecnológica:
A implementação de tecnologias em licitações públicas apresenta uma dualidade fascinante que merece reflexão aprofundada. Conforme demonstrado no artigo anterior sobre a inteligência artificial nas licitações públicas, a tecnologia pode ser poderosa aliada da transparência, eficiência e controle quando adequadamente implementada pelos órgãos públicos para aprimorar a gestão e fiscalização dos processos licitatórios.O Tribunal de Contas da União, através de sistemas como ALICE e MONICA, exemplifica o uso benéfico da IA, alcançando 89% de precisão na detecção de irregularidades e promovendo maior transparência nas contratações públicas. Esses sistemas, desenvolvidos pela própria Administração, democratizam o acesso à informação e fortalecem o controle social.
2.2 O Contraste: Tecnologia à Serviço de Interesses Privados:
Em contraposição direta a esse uso virtuoso, os robôs utilizados de forma irregular por licitantes em pregões eletrônicos representam a face prejudicial da tecnologia aplicada às contratações públicas. Enquanto a IA institucional promove isonomia através da transparência, os robôs privados se usado inadequadamente destroem a isonomia através da vantagem competitiva artificial.
Essa dicotomia evidencia que a questão central não é a tecnologia em si, mas quem a controla e para que fins é utilizada. Quando a Administração Pública emprega IA para detectar fraudes e promover transparência, a tecnologia serve ao interesse público. Quando empresas privadas utilizam robôs para obter vantagens desleais, a mesma categoria tecnológica serve a interesses particulares em detrimento do bem comum.
2.3 Lições da Experiência Comparada:
A experiência com IA benéfica em licitações oferece importantes lições para o enfrentamento do problema dos robôs prejudiciais:
Transparência vs. Opacidade: Enquanto sistemas de IA do TCU são auditáveis e transparentes, os robôs de licitantes operam de forma opaca, sem possibilidade de controle pela Administração.
Democratização vs. Concentração:A IA institucional democratiza o acesso à informação e ao controle, enquanto os robôs concentram oportunidades em empresas tecnologicamente equipadas.
Fortalecimento vs. Enfraquecimento dos Princípios: A IA bem aplicada fortalece princípios como transparência e eficiência, enquanto os robôs enfraquecem princípios como isonomia e livre concorrência.
2.4 A Necessidade de Regulamentação Diferenciada:
Essa análise comparativa demonstra a necessidade de abordagem regulatória diferenciada que:
• Incentive o uso de tecnologia pela Administração Pública para aprimorar transparência e controle;
• Regule rigorosamente o uso correto da tecnologia por particulares;
• Estabeleça critérios claros para distinguir usos legítimos de usos prejudiciais da tecnologia;
A experiência exitosa com IA em órgãos de controle prova que a tecnologia pode ser grande aliada das licitações públicas, desde que adequadamente direcionada ao interesse público e não usada para obtenção de vantagens competitivas privadas.
3. O Funcionamento dos Robôs e seus Impactos:
3.1 Aspectos Técnicos:
Os robôs utilizados em pregões eletrônicos são softwares especializados que monitoram lances em tempo real e respondem automaticamente com ofertas ligeiramente inferiores. Operam com velocidade sobre-humana, em frações de segundo, mantendo seus usuários na liderança durante praticamente todo o certame.
Estudos do Tribunal de Contas da União demonstram que esses dispositivos podem conferir probabilidades de vitória superiores a 70%, frequentemente cobrindo lances por diferenças mínimas de centavos, sem gerar benefícios econômicos substanciais para a Administração.
3.2 Impactos na Dinâmica Competitiva:
A utilização irregular de robôs altera fundamentalmente a natureza da competição, transformando disputas baseadas no mérito das propostas em corridas tecnológicas entre algoritmos. Essa transformação:
• Concentra vitórias em empresas tecnologicamente equipadas;
• Exclui progressivamente micro e pequenas empresas;
• Reduz a participação efetiva nos certames;
• Compromete a legitimidade do sistema licitatório.
4. Violação aos Princípios Constitucionais:
4.1 Princípio da Isonomia:
O artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal determina que o processo licitatório deve assegurar “igualdade de condições a todos os concorrentes”. A Lei nº 14.133/2021 reforça esse preceito no artigo 11, inciso II, estabelecendo como objetivo “assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição”.
O uso inadequado de robôs viola frontalmente esse princípio ao criar barreiras econômicas, técnicas e temporais que impedem a competição equitativa. Quando alguns licitantes dispõem de tecnologia capaz de responder instantaneamente, enquanto outros operam manualmente, não há igualdade de condições.
4.2 Livre Concorrência:
O princípio da livre concorrência (art. 170, IV, CF) pressupõe que os agentes econômicos possam competir em condições equitativas. Os robôs criam “barreiras artificiais à entrada”, distorcendo o funcionamento natural do mercado e concentrando oportunidades em empresas tecnologicamente equipadas.
Essa concentração não decorre da superioridade das propostas, mas da posse de ferramentas específicas, configurando discriminação vedada pelo ordenamento constitucional.
4.3 Impessoalidade e Moralidade:
O uso irregular de robôs também compromete os princípios da impessoalidade e moralidade administrativa. A tolerância a práticas que conferem vantagens artificiais, desiguais, mesmo na ausência de vedação expressa, viola a dimensão ética da atuação administrativa e compromete a confiança no sistema licitatório.
5. Posicionamento Jurisprudencial:
5.1 Tribunal de Contas da União – TCU:
O TCU tem adotado posicionamento contrário ao uso de robôs. O Acórdão nº 1647/2010 estabeleceu precedente fundamental ao concluir que:
Usuários de robôs podem obter “probabilidade maior que 70%” de vitória, cobrindo lances “por alguns reais ou apenas centavos, não representando vantagem de cunho econômico para a Administração”.
Decisões posteriores consolidaram esse entendimento:
• Acórdão nº 2601/2011: Determinou prazo para implementação de mecanismos inibidores.
• Acórdão nº 1216/2014: Reafirmou que, mesmo sem vedação expressa, os órgãos devem implementar mecanismos inibidores “em observância ao princípio da isonomia”.
5.2 Posição Divergente:
O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais admitiu o uso de robôs na Denúncia nº 1.066.880, argumentando que representam “mecanismo de eficiência” e promovem “celeridade e eficiência”.
Essa divergência evidencia diferentes concepções sobre a hierarquia entre princípios administrativos, mas ignora as evidências técnicas sobre os impactos deletérios desses dispositivos na competitividade dos certames.
6. Lacuna Legislativa e Necessidade de Regulamentação:
6.1 Ausência de Regulamentação:
A legislação brasileira não contempla disposições específicas sobre robôs em licitações, criando vácuo normativo preenchido por interpretações jurisprudenciais divergentes. Essa lacuna gera insegurança jurídica e permite a perpetuação de práticas contrárias aos princípios constitucionais.
6.2 Tentativas Legislativas Frustradas:
Os Projetos de Lei nº 1.592/2011 e nº 2.631/2011 propunham a proibição expressa do uso de robôs, mas foram arquivados. O PL nº 1.592/2011 justificava a necessidade argumentando que o uso de robôs “introduz uma quebra na igualdade entre os participantes, visto que nem todas as empresas têm acesso aos robôs”.
7. Conclusões:
A análise demonstra que o uso inadequado de robôs em pregões eletrônicos:
1. Viola a isonomia: Cria vantagens artificiais não acessíveis a todos;
2. Compromete a livre concorrência: Distorce a competição através de barreiras tecnológicas;
3. Degrada a qualidade competitiva: Transforma disputas de mérito em corridas tecnológicas;
4. Concentra oportunidades: Favorece empresas tecnologicamente equipadas;
5. Prejudica pequenas empresas: Cria barreiras à participação de micro e pequenos negócios.
O debate transcende questões técnicas, tocando nos valores fundamentais do sistema licitatório brasileiro. A preservação da isonomia e da livre concorrência não pode ser sacrificada em nome de uma suposta eficiência que beneficia apenas empresas tecnologicamente equipadas.
A modernização tecnológica deve fortalecer, não comprometer, os princípios democráticos que sustentam a Administração Pública. A regulamentação adequada do uso de robôs constitui passo fundamental para assegurar que a inovação sirva e beneficie ao interesse público.
Referências:
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1647/2010-Plenário. Relator: Min. Valmir Campelo. Brasília, 2010.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1216/2014-Plenário. Relatora: Min. Ana Arraes. Brasília, 2014.
MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado. Denúncia nº 1.066.880. Primeira Câmara. Relator: Cons. Subst. Adonias Monteiro. Belo Horizonte, 2019.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1.592/2011. Autor: Dep. Geraldo Resende. Brasília, 2011.
Karina Vieira Pires
Advogada e Consultora Jurídica