Descomplicando Licitações: A Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei 14.133/2021 – Suas Principais Inovações.
Descomplicando Licitações: A Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei 14.133/2021 – Suas Principais Inovações.

A Inteligência Artificial nas Licitações Públicas: Desafios Jurídicos e Perspectivas de Implementação.

Resumo: A implementação da inteligência artificial (IA) nos processos licitatórios brasileiros representa uma das mais significativas transformações no Direito Administrativo contemporâneo. Com a vigência da Lei 14.133/2021, que estabelece o novo marco regulatório das licitações e contratos administrativos, surge a necessidade de análise jurídica aprofundada sobre os desafios e oportunidades que a IA apresenta para os processos de contratação pública. Este artigo examina os aspectos jurídicos fundamentais da utilização de ferramentas de inteligência artificial em licitações, abordando questões de responsabilidade civil, transparência algorítmica e conformidade legal, com base na experiência pioneira do Tribunal de Contas da União e nas melhores práticas internacionais. Mas não aprofundaremos nas questões do uso de Robôs nas licitações, este assunto trataremos em artigo especifico.

 

1. Introdução:

A busca pela eficiência na administração pública, princípio constitucional consagrado no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, encontra na inteligência artificial uma aliada promissora e, simultaneamente, um desafio jurídico complexo. A promulgação da Lei 14.133, de 1º de abril de 2021, que estabelece normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas, coincide com um momento de acelerada digitalização dos processos administrativos e crescente interesse na aplicação de tecnologias emergentes ao setor público.

As ferramentas de IA, como ChatGPT, Gemini, Perplexity e Claude, estão revolucionando o cenário das licitações e contratos administrativos, oferecendo potencial significativo para otimizar processos, garantir maior transparência e aumentar a eficácia das contratações públicas. Contudo, essa transformação tecnológica suscita questões jurídicas fundamentais que demandam análise cuidadosa por parte dos operadores do direito.

O presente artigo propõe-se a examinar os principais desafios jurídicos decorrentes da implementação da IA em processos licitatórios, com foco especial nas questões de responsabilidade civil dos agentes públicos, transparência algorítmica e conformidade com o novo marco regulatório. A análise baseia-se na experiência pioneira do Tribunal de Contas da União, que se tornou uma das primeiras instituições brasileiras a implementar soluções de IA em larga escala para fiscalização de licitações e contratos.

2. O Novo Marco Regulatório e a Digitalização dos Processos Licitatórios:

A Lei 14.133/2021 representa uma mudança paradigmática no direito licitatório brasileiro, entre as principais inovações, destaca-se a expressa previsão de utilização de meios eletrônicos e tecnologias digitais nos processos licitatórios, criando o ambiente jurídico propício para a implementação de soluções baseadas em inteligência artificial.

O artigo 17 da Lei 14.133/2021 estabelece que “as licitações deverão ser realizadas preferencialmente sob a forma eletrônica” e a expressão “recursos de tecnologia da informação” aparece em diversos artigos relacionados à gestão de riscos, controle preventivo e contratações de bens e serviços de tecnologia da informação. Essa abertura normativa constitui o fundamento legal para a implementação de ferramentas de IA em diversas fases do processo licitatório.

A digitalização dos processos licitatórios não se limita à mera transposição de procedimentos físicos para o ambiente virtual. Ela representa uma oportunidade de repensar fundamentalmente a forma como as contratações públicas são conduzidas, permitindo a automação de tarefas repetitivas, a análise de grandes volumes de dados e a identificação de padrões que seriam imperceptíveis ao olho humano.

3. Aplicações da Inteligência Artificial em Licitações: Potencialidades e Limitações:

3.1. Fase de Planejamento:

Na fase de planejamento das licitações, a IA demonstra potencial significativo para aprimorar a qualidade dos estudos técnicos preliminares e dos termos de referência. As ferramentas de IA podem auxiliar na identificação de incoerências na comparação de objetos e preços, na verificação de compatibilidade entre o texto do edital e seus anexos, e na correção precoce de falhas de redação e enquadramento legal.

A experiência do Tribunal de Contas da União com o sistema MONICA (Monitoramento Integrado para o Controle de Aquisições) demonstra como a IA pode ser utilizada para organizar e analisar informações sobre licitações e aquisições públicas, permitindo uma visão panorâmica do mercado de compras governamentais e facilitando a identificação de oportunidades de melhoria nos processos de planejamento.

3.2. Processo Licitatório Propriamente Dito:

Durante a fase externa do processo licitatório, as ferramentas de IA podem desempenhar papel crucial em diversas atividades: auxílio na resposta a consultas e impugnações; verificação da coerência entre contratos sociais e procurações dos licitantes; aferição de dados de demonstrações contábeis e outros documentos apresentados; mapeamento e validação de quantitativos descritos em atestados de capacidade técnica; e análise de recursos com precisão e coerência em face da legislação, do edital e do processo.

O sistema ALICE, desenvolvido pelo TCU, exemplifica essa aplicação prática da IA. Utilizando algoritmos de machine learning, o sistema alcança uma precisão de 89% na detecção de irregularidades em licitações públicas, demonstrando o potencial da tecnologia para aprimorar a qualidade e a integridade dos processos licitatórios.

3.3. Gestão e Fiscalização Contratual:

Na fase pós-licitação, a IA revela-se especialmente valiosa para a gestão e fiscalização de contratos administrativos. As aplicações incluem análise geral do processo para demandas de controle interno e externo; análise de dados em massa na gestão e fiscalização de contratos; produção de análises visuais e relatórios técnicos; e mapeamento de desvios e problemas, com indicação de soluções.

4. Desafios Jurídicos da Implementação da IA em Licitações:

4.1. Responsabilidade Civil dos Agentes Públicos:

Uma das questões jurídicas mais complexas decorrentes da utilização de IA em licitações refere-se à responsabilidade civil dos agentes públicos em casos de falhas ou vieses algorítmicos que resultem em prejuízos ou irregularidades. A Lei 14.133/2021 mantém o regime de responsabilidade pessoal dos agentes públicos por atos praticados no exercício de suas funções, mas a intermediação de sistemas de IA introduz novos elementos de complexidade nessa equação.

O artigo 8º, § 1º, da Lei nº 14.133/2021, por exemplo, estabelece que “o agente de contratação será auxiliado por equipe de apoio e responderá individualmente pelos atos que praticar, salvo quando induzido a erro pela atuação da equipe“. A questão que se coloca é: como aplicar esse dispositivo quando a decisão questionável resulta de recomendação ou análise realizada por sistema de IA?

A doutrina administrativista tem convergido para o entendimento de que a utilização de ferramentas de IA não exime o agente público de sua responsabilidade pela decisão final. Ademais, o administrador público mantém o dever de supervisão e validação das recomendações algorítmicas, não podendo delegar integralmente o processo decisório à máquina. Essa posição encontra respaldo no princípio da indisponibilidade do interesse público e na natureza personalíssima das competências administrativas.

4.2. Transparência e Auditabilidade Algorítmica:

O princípio da transparência, fundamental no direito administrativo brasileiro, assume nova dimensão com a utilização de IA em processos licitatórios. A Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) estabelecem parâmetros importantes para a transparência algorítmica, exigindo que os cidadãos tenham acesso a informações sobre como as decisões automatizadas são tomadas.

O artigo 20 da LGPD é particularmente relevante nesse contexto, ao estabelecer que “o titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem os seus interesses”. Embora a norma se refira especificamente a dados pessoais, de acordo com o princípio subjacente da transparência algorítmica pode-se aplicar também aos processos licitatórios.

A implementação de IA em licitações deve, portanto, observar requisitos de explicabilidade e auditabilidade. Os algoritmos utilizados devem ser passíveis de compreensão e verificação, auditáveis, por parte dos órgãos de controle e dos próprios licitantes, garantindo que as decisões automatizadas possam ser questionadas e revisadas quando necessário.

4.3. Viés Algorítmico e Isonomia: 

O princípio da isonomia, consagrado no artigo 3º da Lei 14.133/2021, exige que todos os licitantes sejam tratados de forma igualitária no processo licitatório. A utilização de IA introduz o risco de vieses algorítmicos que podem comprometer esse princípio fundamental.

Os vieses algorítmicos podem manifestar-se de diversas formas: através de dados de treinamento enviesados, algoritmos que reproduzem discriminações históricas, ou critérios de avaliação que favorecem determinados tipos de fornecedores. A identificação e mitigação desses vieses constitui desafio técnico e jurídico de primeira grandeza.

A jurisprudência do Tribunal de Contas da União tem enfatizado a necessidade de monitoramento contínuo dos sistemas de IA utilizados em processos licitatórios, com vistas a identificar e corrigir eventuais vieses que possam comprometer a isonomia entre os licitantes.

5. Experiência do TCU: Pioneirismo e Lições Aprendidas:

O Tribunal de Contas da União posiciona-se como pioneiro na utilização de inteligência artificial para fiscalização de licitações e contratos públicos no Brasil. Em 2023, o TCU tornou-se um dos primeiros órgãos no país a oferecer tecnologia de IA generativa conectada a diversos sistemas internos, estabelecendo um modelo de referência para outras instituições públicas.

A experiência do TCU com os sistemas ALICE e MONICA oferece valiosas lições sobre os desafios práticos da implementação de IA em processos relacionados a licitações. O sistema ALICE, focado na identificação de indícios de fraude e corrupção em compras públicas, demonstra como a IA pode ser utilizada para aprimorar a efetividade do controle externo, permitindo a análise de grandes volumes de dados e a identificação de padrões suspeitos que poderiam passar despercebidos em análises manuais.

O desenvolvimento desses sistemas observou rigorosos critérios de segurança da informação e transparência, utilizando tecnologia da Microsoft e garantindo que as decisões algorítmicas fossem auditáveis e explicáveis. Essa abordagem constitui modelo de boas práticas para outras instituições que pretendam implementar soluções similares.

6. Recomendações para Implementação Responsável da IA em Licitações:

Com base na análise dos desafios jurídicos identificados e na experiência pioneira do TCU, é possível formular algumas recomendações para a implementação responsável da IA em processos licitatórios:

Governança e Supervisão Humana: A implementação de IA deve ser acompanhada de estruturas robustas de governança, garantindo que as decisões finais permaneçam sob responsabilidade de agentes públicos qualificados. A IA deve ser vista como ferramenta de apoio à decisão, não como substituto do julgamento humano.

Transparência e Explicabilidade: Os algoritmos utilizados devem ser transparentes e explicáveis, permitindo que licitantes e órgãos de controle compreendam como as decisões são tomadas. Isso inclui a documentação adequada dos critérios utilizados e a possibilidade de auditoria dos sistemas.

Monitoramento de Vieses: Deve ser implementado sistema contínuo de monitoramento para identificação e correção de vieses algorítmicos que possam comprometer a isonomia entre licitantes.

Capacitação de Agentes Públicos: A implementação de IA exige investimento significativo na capacitação dos agentes públicos responsáveis pelos processos licitatórios, garantindo que tenham conhecimento adequado sobre as potencialidades e limitações das ferramentas utilizadas.

Conformidade Legal: A utilização de IA deve observar rigorosamente os requisitos legais aplicáveis, incluindo a Lei 14.133/2021, a Lei de Acesso à Informação e a Lei Geral de Proteção de Dados.

7. Conclusão:

A implementação da inteligência artificial em processos licitatórios representa oportunidade para aprimorar a eficiência, transparência e qualidade das contratações públicas brasileiras. A Lei 14.133/2021 fornece o marco regulatório adequado para essa transformação, estabelecendo princípios e diretrizes que favorecem a inovação tecnológica no setor público.

Contudo, os desafios jurídicos identificados exigem abordagem cuidadosa e responsável. A responsabilidade civil dos agentes públicos, a transparência algorítmica e a prevenção de vieses constituem questões fundamentais que devem ser adequadamente endereçadas para garantir que a IA contribua positivamente para o aprimoramento dos processos licitatórios.

A experiência pioneira do Tribunal de Contas da União demonstra que é possível implementar soluções de IA de forma responsável e efetiva, observando os princípios fundamentais do direito administrativo. O sucesso dessa implementação depende, fundamentalmente, da adoção de estruturas adequadas de governança, transparência e supervisão humana.

O futuro das licitações públicas no Brasil terá grande participação da inteligência artificial. Cabe aos operadores do direito, gestores públicos e órgãos de controle trabalhar colaborativamente para garantir que essa transformação ocorra de forma a fortalecer, e não comprometer, os princípios fundamentais que regem a administração pública brasileira.

A mudança de paradigma está em curso. A questão não é mais se a IA será utilizada em licitações, mas como garantir que sua implementação observe os mais altos padrões de legalidade, eficiência e transparência. Nesse contexto, a análise jurídica criteriosa e a adoção de melhores práticas constituem elementos essenciais para o sucesso dessa transformação.

Karina Vieira Pires

Advogada e Consultora Jurídica